Biografia
António da Cunha Ferreira Baltar
Biografia
António da Cunha Ferreira Baltar, filho legítimo do comendador Francisco Ferreira Baltar e de D. Carolina Engrácia da Cunha Baltar, nasceu em Pernambuco aos sete dias do mês de Janeiro de 1853. Veio muito criança para Portugal, e aqui adquiriu as bases de uma sólida educação literária, da qual deu exuberantes provas em excelentes exames feitos nos liceus de Lisboa e do Porto. Tendo completado os aludidos estudos, com êxito pouco vulgar, partiu para Inglaterra, e dali passou a Alemanha, residindo nestes países durante três anos, tempo que dedicou exclusivamente à prática do comércio e ao aperfeiçoamento das línguas alemã, inglesa, francesa, italiana e espanhola, de todas as quais faz actualmente um tão perfeito uso como do próprio idioma materno. Em 1870, contando apenas 17 anos, e tendo já nessa idade uma soma de conhecimentos, que muitos homens, aliás inteligentes e estudiosos, não conseguem alcançar num maior lapso de tempo, recebia em Pernambuco a visita de seu pai, com quem passou a viajar, dando-se, durante um ano, ao estudo ininterrupto, cuidadoso e inteligente, dos costumes, da índole, e da riqueza comercial de todos os povos da Europa, cujas principais cidades visitou. Assim preparado para o exercício do alto comércio, a que projectara dedicar-se, regressava a Pernambuco em 1871, após uma ausência de dez anos, e assumia logo depois a gerência da casa Baltar, Oliveira C.ª uma das mais antigas, mais consideradas, e de maior movimento daquela praça. Tão pesado encargo, que lhe era conferido pelos interessados em atenção à sua inteligência, aptidões e seriedade, representava uma distinção merecida, um título honroso, que Ferreira Baltar muito preza e tem sabido manter impoluto, dando quotidianas provas de um zelo e de uma competência acima de todo o elogio. A casa que Ferreira Baltar dirige, conta, sob a já mencionada razão comercial de Baltar, Oliveira C.ª uma existência de quase quarenta anos. As suas transacções efectuam-se pela importação e exportação de carne de Xarque, açúcar, algodão e couros, géneros estes que constituem a especialidade do seu comércio, embora aceite muitos outros à consignação. Dispondo de uma vontade inquebrantável, activo, dedicado, perspicaz e empreendedor, Ferreira Baltar tem conseguido desenvolver tão prodigiosamente as preditas operações comerciais, que a casa confiada à sua excelente iniciativa sustenta actualmente as melhores relações com todas as praças da Europa e da América, e traz em permanente serviço uma esquadrilha de cinco magníficos barcos mercantes, sua propriedade, com as denominações de Brilhante, Tigre, Mimosa, Marianinha e Nova Simpatia; sendo este último, pela sua elegante e perfeita construção, um dos mais belos navios, que fazem carreira entre Pernambuco e o Rio Grande. Era este o meio de que Ferreira Bailar carecia para largamente desenvolver e demonstrar os dotes naturais e as aptidões adquiridas. Num breve interstício de tempo, pois, a sua vasta ilustração, incontida honestidade, são critério, e outras distintas qualidades que o exortam, davam-lhe créditos de administrador excepcional e de comerciante de primeira plana, valendo-lhe conjuntamente a estima e o respeito dos seus concidadãos. Assim é, que, por uma tão honrosa quão merecida deferência, tem sido chamado a exercer muitos cargos importantes, de entre os quais se nos faculta mencionar os seguintes: Director da Associação Comercial Beneficente de Pernambuco, director e instalador da Caixa Económica e Montepio de Socorro (instituição devida à iniciativa do governo imperial), director da Caixa de Seguros Marítimos e Terrestres Indemnizadora, membro do conselho fiscal da New Iorque Life Insurance Company, membro do conselho fiscal da Companhia das Águas de Biberibe, sócio benemérito do Hospital Português de Beneficência, e director e um dos instaladores do Clube Alemão Concordia. Faz também parte da sociedade Nova Emancipadora, bem como de muitas outras sociedades luso-brasileiras, e tem a patente de capitão da Guarda Nacional. De tantas e tão subidas missões logra Ferreira Baltar desobrigar-se por uma forma verdadeiramente privilegiada, confirmando os altos créditos de que goza, e correspondendo brilhantemente à confiança ilimitada que todos porfiam em dispensar-lhe. Contando hoje 30 anos de idade, e estando, consequentemente, na mais vigorosa, na mais prometedora quadra da vida, fácil é calcular o muito que há a esperar do seu futuro. Que ele lhe seja, como o presente, caminho recamado de flores, tais são os nossos votos e os de quantos lêem na devida conta os seus distintos merecimentos. Ferreira Baltar professa um verdadeiro culto pelo estudo e consagra-lhe a melhor parte do tempo que os labores da vida comercial lhe deixam livre, permitindo-lhe o excelente pecúlio literário de que dispõe compulsar com grande vantagem os livros de muitos dos mais afamados escritores europeus e americanos. A sua biblioteca, estabelecida num gabinete confortável, ornado com gosto e propriedade, onde de tempo a tempo reúne alguns amigos dilectos, compõe-se de obras notáveis de ciência e de literatura, assim antigas como modernas, acerca da doutrina e do mérito das quais disserta com manifesta proficiência. Em ajuda desta nossa afirmação vem aqui de molde referirmos como, num desses agradáveis e instrutivos entretenimentos literários, lendo e apreciando alternadamente o Cancioneiro Alegre, comentado por Camilo Castelo Branco, e deparando-se-lhe a folhas 105 os versos de Gonçalves Crespo Um número do Intermezo irrompeu nesta desassombrada exclamação: Ah! mas isto não é polir o diamante bruto de um clássico, nem encrava-lo em adereço de feitio novo, como o ilustre comentador nos diz na sua frase elegante e correcta; isto é só e simplesmente escrever, com mimo e arte inexcedíveis, um magnífico plágio do Der Theestich de Heinrich Heine. 1 E logo, com a mesma facilidade e correcção com que o poderia fazer um filho ilustrado da Alemanha, passou a recitar a poesia, que começa por estes versos Sie sassen und tranken am Theestich und sprachen Von Liebe Viel. e é considerada como uma das muitas bagas de ouro que abrilhantam a coroa de Heine. É bem de supor, que ao leitor tenha parecido demasiadamente duro o termo plágio, acostumado como está a encontra-lo substituído pelos de tradução e imitação. O seu reparo tem por isso uma certa razão de ser. Consinta, porém, dizermos-lhe, que o valor da observação do nosso estimável biografado está exactamente em ele dar às coisas o seu verdadeiro nome, mostrando que as conhece. É por sem dúvida de uma franqueza pouco vulgar nestes tempos que vão correndo; mas essa franqueza deve-lhe ser tomada em tanto melhor conta quanto é certo que ela de nenhum modo envolve a intenção absurda de querer ofuscar os esplendores da auréola que circunda a memória ilustre do exímio e malogrado poeta. 1 Poeta alemão, nascido em 13 de Dezembro de 1799 e falecido em 17 de Fevereiro de 1856. Porque tem faculas, não deixa o sol de ser o astro-rei. E depois notar-lhe-emos se nos tolera o emprego de um termo velho e relho, que o pecadilho vem de longes tempos, sem desdobro para os que o têm cometido. Luís de Camões, o Homero português, não duvidou traduzir da Eneida estes versos, com que fechou, de uma maneira esplêndida, a estancia 38.ª do canto 4.° da sua monumental Epopeia: E as mães, que o som terribil escuitárão, Aos peitos os filhinhos apertárão. Mais remotamente, o desditoso amante da princesa D. Beatriz, o terno e melancólico Bernardim Ribeiro permitia-se também a liberdade de traduzir Virgílio, desabafando fundas tristezas de alma e legando à posteridade a sua até hoje inimitável écloga: Ide-vos, minhas cabras, ide-vos Gado bem-aventurado Em outro tempo passado; Ficai-vos, ou despedi-vos, Despojo do meu cuidado: Já vos não verei comer Penduradas do penedo Onde vos podia ver Andar saltando sem medo, Sem medo de me perder. E se pretendêssemos levar por diante esta já longa divagação, daqueles priscos tempos até à actualidade, quantos casos idênticos! Reflicta o leitor, pois, sobre a sua estranheza, verifique como ela implica precisamente um louvor para Ferreira Baltar, e ficará com o desvanecimento de ter feito à inteligência e ilustração do nosso biografado, sem mesmo o pensar, a justiça que nós de boa mente lhe fizemos trazendo, para a luz da publicidade aquela sua esclarecida apreciação. Voltemos ao ponto em que nos achávamos. Íamos dizendo, e repetimo-lo agora, que o saber e os talentos de Ferreira Baltar se robustecem dia a dia pelo estudo. Vimos já, como, dos recursos da esmerada educação literária que entre nós recebeu, postos ao serviço da sua notável inteligência, tem dado larga demonstração, em proveitosos resultados, quer na prática do alto comércio, quer no desempenho das mais distintas funções. Óptimos seriam de certo outros frutos da sua muita ilustração e talento, se, renunciando a um sistemático e injustificável retraimento, de que parece comprazer-se, houvesse procurado entregar-se confiadamente aos labores honrosos da imprensa. Prefere-lhes, todavia, escudado numa excessiva modéstia, que não nos consente o ânimo louvar-lhe, o isolamento improfícuo, a abstenção inglória. Mas acaso tencionará perpetuar tão indesculpável resolução? Não o queremos supor. Antes alimentamos a esperança de que, nas ciências económicas ou nas belas letras, venha algum dia a figurar vantajosamente, dando ao prelo trabalhos valiosos, pelos quais há-de honrar-se, honrando por igual o seu país. Ser homem inteiramente sociável, na melhor e mais completa significação destas palavras, isto é, reunir todas as qualidades que constituem simultaneamente o que se chama um perfeito cavalheiro e um bon vivant, e mediante as quais se consiga sempre e em toda a parte considerações e simpatias, é possuir um condão que pode considerar-se privilégio de poucos. Pois tem Ferreira Baltar esse predicado excepcional. Civil sem afectação, afável, comunicativo e insinuante, de um bom humor nunca desmentido, compreendendo e respeitando todas as conveniências, a sua presença, as suas maneiras, o seu trato agradabilíssimo, atraem e cativam prontamente. Daí as gerais simpatias, respeitos, afectuosas considerações que lhe são tributadas. Contudo, no círculo das íntimas relações, onde pode ser francamente expansivo, maior vulto tomam ainda estes dons inapreciáveis. Alegre por temperamento e generoso por índole, é na conversação jovial e benévolo, fluente e animado, prendendo e encantando em absoluto os que o escutam. Se acerta de fazer a critica das coisas ou das pessoas, tem a palavra chistosa e colorida, incisiva e concludente, mas sem reçaibos de maledicência, nem presunções de superioridade. Uma fronte sem sombras e um sorriso de inexcedível franqueza, espelhando a limpidez de uma alma propensa e afeita a tudo quanto é digno e bom, confirmam, acentuando-os, os belíssimos traços da sua fisionomia moral. O seu convívio é, por todas estas poderosas circunstâncias, de inestimável valor. Ao seu lado corre tão agradavelmente o tempo, que só vem a lembrar pela necessidade, que se torna em dissabor, de um apartamento mais ou menos longo. Felizes aqueles que podem acolher-se repetidas vezes ao favor da sua prodigalíssima amabilidade! Uma das feições mais salientes do nobilíssimo carácter de Ferreira Baltar, é a que manifesta o seu inexcedível amor e carinhoso desvelo pela família. Poucos meses depois de ter regressado a Pernambuco contraía núpcias, ligando-se a uma senhora altamente considerada pelos esmeros da educação e eminentes virtudes, filha do comendador Henrique Bernardes de Oliveira, um dos sócios da firma comercial que geria, a casa entregue à sua zelosa administração. Desse feliz enlace provieram-lhe já três filhinhos, formosas e interessantes crianças, vivas e meigas, verdadeiros colibris, que enchem de alegria e esperanças o ninho paterno. Do extremoso afecto que Ferreira Baltar lhes consagra, e da quase idolatria que professa por sua esposa, só poderíamos dar uma pálida ideia, se pretendêssemos descreve-los, por isso que os não alcançaria a mais calculada expressão de encarecimento. Limitamo-nos, pois, a dizer, que as melhores horas da sua existência são as que na paz tranquila do lar doméstico passa junto daqueles entes caros, entregue aos inefáveis júbilos de os contemplar enlevado, ou de lhes prodigalizar toda a sorte de meiguices e cuidados. Velar pelo presente bem-estar deles, e conceber risonhos projectos pelo seu venturoso futuro, tais são os pensamentos que lhe dominam constantemente o espírito e constituem as suas mais levantadas ambições. Santas e invejáveis ambições aquelas, em que se revelam os preciosos tesouros de um coração de esposo e de pai amantíssimo! Possa ele vê-las cabalmente realizadas, como único prémio condigno dos seus acrisolados sentimentos. Concluindo, cabe-nos a distinção de deixar consignadas nas colunas do Comércio e Industria, como síntese das precedentes notas biográficas, as seguintes palavras, que reproduzem com inteira satisfação o dizemos a fórmula conscienciosa de um julgamento sempre confirmado por quantos têm tido a fortuna de privar ou de simplesmente se relacionarem com o nosso biografado. António da Cunha Ferreira Baltar é, pelas eminentes qualidades de espírito e de coração, um cavalheiro estimabilíssimo, um carácter altamente respeitável, um cidadão ilustre e prestimoso, do qual pode orgulhar-se em extremo o formoso país que o viu nascer e o conta como um dos seus mais selectos ornamentos. E se aqueles, que, por várias circunstâncias, têm a ventura de acercar-se-lhe, folgam de prestar-lhe, admiradores dos seus relevantes dotes e cativos da sua inexcedível amabilidade, inequívocos testemunhos da mais justa estima e consideração, nós, na impossibilidade absoluta de o abraçarmos estreitamente, ou de lhe estendermos com júbilo a mão de amigo, endereçamos-lhe, desta faixa extrema do Ocidente, em que passou a mais sorridente quadra da sua esperançosa juventude, uma saudação significativa de igual acatamento, na convicção de que a aceitará como um preito que lhe é devido. A tout seigneur tout honneur. Sua Majestade D. Luís I acaba de agraciar com a comenda de Cristo o nosso biografado. Chega-nos tão apreciável notícia no momento precisamente de corrigirmos as provas deste nosso escrito. Dando-lhe publicidade neste lugar, sentimos um duplo prazer: o de vermos galardoados, de um modo indelével, os subidos méritos de António da Cunha Ferreira Baltar, e o de deixarmos, por assim dizer, irrecusavelmente chancelado quanto a nossa humilde pena a seu respeito aqui traçou. Lorena Queiroz in Galeria Photographica-Biographica Luzo-Brazileira Lisboa, Abril 1884.
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António da Cunha Ferreira Baltar